O REI DE NÁPOLES
Um rei tinha um filho, e como era o único, queria que ele se casasse; mas o
príncipe respondia-lhe sempre que não se casaria senão com uma filha do rei de
Nápoles se ele tivesse alguma.
O príncipe tratou logo de indagar bem se o rei de Nápoles tinha alguma filha;
mas não achava pessoa que lhe desse a certeza. Depois de muitas indagações
partiu para Nápoles, e armou-se a deitar um pregão, dizendo que dava esmolas
a todos os velhos que quisessem lá ir. Era para ver se algum lhe dava notícias se o
rei tinha alguma filha. Todos com quem ele falava lhe diziam que tinham sido
nados e criados e que tal coisa nunca tinham ouvido. Indo um dia à esmola a casa
do príncipe uma velha, perguntou-lhe se ela sabia de o rei ter alguma filha?
Respondeu a velha:
— Oh senhor, eu aqui nasci e daqui sou, mas nunca ouvi de ele ter nenhuma
filha. Agora, passando eu o outro dia por uma esquina do palácio, vi de dentro de
uma fresta uma cara tão linda, que me pareceu ser de princesa. Mas não posso
dar maior certeza.
O príncipe prometeu à velha de lhe pagar bem, se ela descobrisse que era a
princesa. Um dia indo a velha pela esquina, viu à fresta a tal cara linda e
chamou-a para lhe vir falar. Ela veio; perguntou-lhe a velha se queria comprar
joias, que sabia quem as tinha bem boas.
A princesa disse que sim, e combinou a hora em que iriam ter à fresta. A velha
foi muito contente dizer tudo ao príncipe. Como tinha visto a princesa, que
tinha falado com ela, e combinado a hora de ele ir com as joias. O príncipe
vestiu-se em trajo de adelo, e chegou à esquina a apregoar joias.
Neste tempo ouve uma voz, que vinha da fresta, chamar:
— Ó homem das joias!
O príncipe voltou para trás muito contente, e a princesa disse-lhe que entrasse
por aquela escadinha. Assim fez; mostrou-lhe as joias, ela estava satisfeita, e
disse depois de escolher:
— Vamos agora ao preço.
— Se a senhora está contente com essas, em casa tenho outras ainda melhores, e
trago-as cá amanhã.
Quando chegou a casa a velha aconselhou-o a que vestisse por baixo os seus
fatos de príncipe, e por cima com o trajo de vendilhão das joias, para quando
chegasse às escadinhas despir-se e falar à princesa como quem era. Assim fez; a
princesa quando o viu feito príncipe assustou-se; mas ele expôs-lhe a sua prática
e a diligência que tinha feito para chegar àquele lugar, e que o seu sentido era
casar com ela.
A princesa aceitou o pedido, e assentou a hora da noite muito em segredo em
que ele a iria buscar, porque o rei seu pai não queria que ela se casasse. O
príncipe, pelo muito desejo que tinha de a ir buscar, foi logo de serão para o
lugar da escadinha; mas cansado de esperar, encostou o cotovelo sobre a sela do
cavalo e pegou a dormir.
Neste tempo passou um homem de meia-tigela pelo pé do príncipe, e quis ver se
o conhecia; nisto ouviu uma voz que dizia:
— Vamos, vamos! que já está o escaler na água à nossa espera.
O tal homem viu descer uma donzela muito linda, e pegou nela com toda a
riqueza que trazia; meteram-se no escaler e partiram.
O pobre do príncipe ficou ali até amanhecer. Quando acordou julgou que a
princesa o tinha enganado, e foi para outra terra, e quando lá chegou começou
outra vez a dar esmolas aos pobres para descobrir por algum se o rei de Nápoles
tinha alguma filha.
A princesa, quando amanheceu, que se viu com aquele homem, disse consigo:
— A primeira vista não é vista; mas isto não é o príncipe meu senhor.
O ladrão do homem, como a via desgostosa, perguntou-lhe:
— Sabe a menina com quem vai?
— Com o príncipe meu senhor.
— Pois saiba que vai com um ladrão.
A princesa começou a chorar, e foram andando, andando e chegaram lá a uma
terra chamada das Junqueiras.
Ele varou a lancha, deixou ficar ali a princesa e foi-se embora; havia ali só uma
mulher viúva com a sua filha.
A princesa ficou a chorar muito naquele escampado, por se ver sozinha, e tudo
isto era de noite. Disse a filha à mãe:
— Estou ouvindo chorar; e parece-me ser mulher.
— Não, filha; isso podem ser os ladrões, para nos enganarem e virem roubarnos.
Tornou a dizer a filha:
Será tudo o que Deus quiser;
Mas aquele chorar é de mulher.
Foram ambas, e deram com a princesa, que elas não conheciam, e tomaram-na
para a sua companhia.
O príncipe continuava a dar esmolas aos pobres, e perguntava a todos se o rei de
Nápoles tinha alguma filha. Todos diziam que não, que nunca tal tinham
ouvido.
Afinal foi lá um velho e fez-lhe esmola, e repetiu a pergunta do costume; o velho
respondeu:
— Se o senhor soubesse o que eu passei com ela! sempre se havia de rir um
bocado.
O príncipe puxa uma cadeira e senta o velho ao pé de si. O velho contou:
— Eu vinha um dia do jogo das távolas; e passei pelo palácio do rei; estava lá
numa esquina um cavaleiro dormindo, por sinal com o cotovelo na sela do
cavalo; fui ao pé dele para ver se o conhecia, e a este tempo ouvi dizer: «Vamos!
que já está o escaler na água à nossa espera.»
E foi contando tintim por tintim o caso do roubo da princesa até a ir deitar na
terra das Junqueiras.
Assim que chegou a este ponto, o príncipe não se teve em si, puxa de um punhal
e crava-o na cabeça do velho e matou-o. Os outros velhos que estavam ali,
gritaram logo:
— Aqui d'el-rei, que mataram o nosso irmão.
Acudiu logo a Justiça para levarem o príncipe para o Limoeiro; chegou o dia em
que ia a enforcar, e ele pediu mais uma hora de vida. Chamou um dos homens
que ali estava, que fosse ao palácio pedir ao rei um livro de pastas vermelhas, que
estava à cabeceira do príncipe. O rei assim que ouviu isto deu-lhe um baque o
coração, e conheceu que só o príncipe é que podia fazer aquele pedido. E como
já havia muitos anos andava ausente do reino, foi ver se seria ele; meteu-se na
carruagem e foi ter com ele, trouxe logo para o palácio o filho, que lhe contou
todos os seus trabalhos:
— Agora, meu pai, dê-me licença para ir à terra das Junqueiras buscar a princesa.
O pai mandou aprontar uma das melhores naus, e o príncipe assim que chegou à
terra das Junqueiras e viu uma casinha, bateu e quem lhe veio falar foi a dona. Às
perguntas do príncipe, disse que morava com duas filhas. O príncipe disse se ela
dava licença, que as queria ver. E ela disse, que não tinham roupinha capaz de
aparecerem a Sua Alteza. Tanto teimou que elas apareceram, e o príncipe logo a
reconheceu, e disse que ia por causa dela, para a levar para o palácio. A princesa
disse que estava bem, e que para enganos só bastava uma vez. Ele disse que
levaria também para o palácio as suas companheiras, que seriam tratadas como
pessoas reais. Foram-se embora e casaram, e ficaram vivendo todos como Deus
com os anjos.
(Ilha de S. Miguel — Açores)
Título: Contos Tradicionais do Povo Português – volume 1
Autor: Teófilo Braga
Edição: Agrupamento de Escolas de Rio de Mouro
Coleção: Clássicos da literatura portuguesa
Adaptação, paginação e projeto gráfico: Carlos Pinheiro
1.ª edição: outubro de 2013
ISBN: 978-989-8671-16-5
Edição segundo as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de
1990.
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